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Há coisa de 20 anos, nos finais de tarde de Verão, grupos de motards montados nas suas Famel, galgavam com perícia o asfalto azul estampado aleatoriamente com o amarelo torrado do que restava da digestão bovina. O destino prometia uma malga de amendoins e uma Cristal, torciam o acelerador.

Estrada abaixo, estrada acima, com o capacete encaixado no braço ou no topo da cabeça – moda mais tarde copiada com óculos de sol – enfrentavam as subidas com uma viril redução para segunda, violência mecânica que a mota respondia com um trepidante zumbido agudo. Só quem não conhece o gosto de vento na cara, do SG Ventil a arder pacientemente no canto boca, pode censurar tal atropelamento ao código da estrada, catarse tribal de um dia a enfiar pázadas de cimento e areia na insaciável boca de uma betoneira.

Eram a escolta fiel das raparigas que, sob a desconfiança das acompanhantes mais velhas, pela beira da estrada carregavam canecos  para depositar nos já desaparecidos postos do leite. As regras do jogo eram muito simples naquela altura. A inocência do cabisbaixo sorriso tímido, aparente candura.

Em arriscadas cabriolas nas bicicletas de montanha,  a canalha pedalava com os dentes cerrados, fascinados que estavam com o conta-quilómetros a marcar 50 nas descidas, tornando mensuráveis as histórias que se contam no recreio da escola. Era Agosto, parávamos nos caminhos para comer uvas morangas e maçãs de são miguel, nomenclatura que julgo correcta se a memória não atraiçoa pois o google não sabe destas coisas. Subíamos ás árvores, eu tinha medo. Choviam faúlhas de fento carbonizadas daquela nuvem escura que se levantava cobrindo o monte, o aroma a eucalipto queimado.

Sobre o balcão de madeira, ao lado da balança, o senhor do tasco fazia as contas num pedaço de papel arrancado de um enorme saco de amendoins, nunca se enganava, ninguém conferia. Do tecto descia um gancho comprido com um  presunto empalado, ao lado uma fita com moscas coladas. Não sobravam espaços para marcar o resultado da sueca na única mesa, grossa  e com chapa amassada cravada nos cantos, por debaixo esticava-se o cão abrigado do calor, tinha um pouco de azeite com borralha nas orelhas para que não lhe pegasse a mosca. Na parede pendurava-se uma moldura amarelada onde se perfilavam os campeões de 77, senhores de bigode e calções curtinhos, nem para a fotografia se ajoelhavam, eu não tinha jeito para jogar à bola nem sabia dar toques. Grades de cerveja empilhavam-se em cantos obscuros,  pedia um  Sumol, procurava caricas cá fora perto do canastro.

Interrompe-se a memória, incursão catatónica envolta em brumas.

A mudança foi brusca, os senhores da televisão têm vergonha das origens, do passado na província, o tasco fechou há anos, o senhor faleceu. Multiplicaram-se os cafés, esterilizados, inertes, insípidos, o homem nórdico venceu pela arquitectura, o IKEA é colonização. Quer factura? Sal nos olhos. Sabujos.

Veio o alcatrão. Terraplanagem. Hordas de camiões. O piche no lugar da massa encefálica, o progresso, a pantomina.

O Minho está feio, um Detroit estético. O caos urbanístico derrama-se sobre os campos de milho, ladeado por estradas e tocos queimados. Reduziu-se  a um domingo à tarde na TVI, à caricatura de vacas a pastar num pedaço de terra no Terreiro do Paço, à Volta a Portugal em obras, rotundas, cartazes, entulho na beira da estrada, é paisagem em playback.

Hoje, o Minho é uma amante desfigurada pela pancada. Terra esfolada por pesadas máquinas amarelas, o braço armado da cupidez.