Etiquetas
Aristocracia, comunismo, Ivan Turguéniev, Literatura, Literatura Russa, livro, Nejdánov, Revolução, Solo Virgem
“O mesmo olhar servil, impudente ou caído…
O nosso povo agora é livre, e o braço livre
Pende como antes o chicote à cinta.” (pág. 197)
O tema do confronto ideológico na Rússia da segunda metade do século XIX volta a ser tratado por Ivan Turguéniev. Se em Pais e Filhos, concentrou-se na génese ideológica da revolução, em Solo Virgem, esta começa a tomar forma através da obstinação cega dos activistas que se reuniam secretamente repetindo uma cartilha até à exaustão, até serem vergados pelo peso das palavras, seguindo instruções de um aparelho que desconheciam num paradoxo de troca de autoritarismo. Turguéniev ‘embrulhou’ esta rigidez com uma mestria que não se compromete num julgamento, cedendo-o ao leitor mantendo a distância artística.
Solo Virgem é uma obra que se eleva acima dos confrontos doutrinários insinuados no parágrafo anterior, é uma obra sobre a inadequação da personalidade das personagens perante as suas próprias convicções, Nejdánov é a charneira deste contraste. É membro de um pequeno grupo de revolucionários que actuavam em Petersburgo, mas deles se distingue, fora suplantado pela sua razoabilidade e veia aristocrática, era um esteta, também nesta obra há o conflito entre o descomprometimento da arte e a clandestinidade da luta, revelando a incompatibilidade entre as duas. A caracterização de Nejdánov parte de uma ingenuidade um pouco artificial relativamente ás paixões, claramente ele se sentia atraído por uma mulher mais velha, Valentina, e não sentia atracção pelas activistas que o rodeavam, representando este repulsa, o seu reconhecimento pela sua inadequação perante o carácter rectanglar de Machúrina.
A arrogância intelectual dos discursos políticos “sem levar em conta as circunstâncias especiais e sem mesmos tentar saber o que as massas queriam”, era acompanhada por um desprezo pelo povo que surgia como o solo virgem onde seriam semeadas as sementes revolucionárias. Esta atitude era sublinhada no outro lada da barricada, o establisment personalizado pelo desprezível Kalloméitsev que nunca perdia uma oportunidade para declamar a sua doutrina conservadora.
Este solo virgem, o povo do campo e das fábricas, estava assim encurralado entre estas duas forças antagónicas, era o campo de batalha, o instrumento ao alcance das duas facções.
Há uma intimidade do autor com a arte e com a ciência, são constantes as referências a outros escritores, músicos, filósofos e cientistas. Particularmente, russos, alemães e ingleses. Tolstói também o fazia, mas com o propósito de servir como sustentação da a sua argumentação filosófica, em Turgueniév há uma clara reverência pelo mundo do conhecimento. É uma sensibilidade muito nobre, é generoso nas suas referências, não denota nenhuma arrogância intelectual, para a qual facilmente poderia resvalar.
“(…) um tipo tão admiravelmente descrito por Lérmontov nos seus conhecidos versos:
“Todo escondido atrás da gravata, fraque até aos pés…
Bigode, voz trémula – e olhar pesado.”
Chegou outro vizinho de ar abatido, desdentado, mas impecavelmente vestido; chegou a médico distrital , um péssimo médico, mas que gostava de se exibir com palavras difíceis: garantia, por exemplo, que preferia Kúlkolnik a Púshkin porque Kúlkolnik tinha muito ‘protoplasma’ ” (pág. 50)
Mikhail Lérmontov fora um contemporâneo de Turguéniev. Em Pais e Filhos também este artifício. Não tenho a certeza de qual será a intenção do autor, talvez a de resgatar o leitor, com delicadeza, do mundo da ilusão, afirmando que este está perante arte e deverá apreciá-la como tal. Não seria também surpreendente que, após uma clivagem tão grande entre a caracterização das várias personagens, antecipando um claro conflito entre as mesmas, esta invocação da arte resfrie um pouco o ânimo.
A constante actualização dos dados biográficos das personagens tem detalhes absolutamente brilhantes (pag 109) o casal de velhotes Fómuchka e Fímuchka, tais como a rapariga anã, Pufka, que os entretia com notícias sobre Napoleão e a guerra de 1812 . Toda aquela imagética arcaica que compõe cada detalhe da vida do casal estabelece um contraste desconcertante com a vontade de ruptura dos três jovens revolucionários. É um capítulo onde a referência a Gógol não é inocente, um sarcasmo de crivo fino, criando situações de embaraço que revelam a impaciência e obtusidade de Markélov.
Turguéniev, à imagem de Pais e Filhos, cria interessantes oposições de personalidades entre mulheres que moram na mesma casa, jogando com essa intimidade expõe a sua inteligência e conquista-lhes pela literatura, a independência que a realidade lhes recusa. Marianna é sobrinha de Sipiágin que dela tomara conta, mas a orgulhosa rapariga não suportava esta dependência apesar do conforto do ambiente aristocrático de cigarros e jogos de cartas em salões decorados para o efeito, foi encontrar na luta de classes, através de Nejdánov, uma motivação que lhe dava sentido à vida. Valentina Mikháilovna, esposa de Sipiágin, é uma bela senhora, confortável com o seu estatuto, que se foi revelando intriguista na segunda parte da obra.
Solo Virgem divide-se em duas partes, e as transformações que referi ocorrem em ambas com muita clareza. Se na primeira parte, o charme de Valentina e Sipiágin são um paradigma da diplomacia aristocrática, deixam cair a máscara na segunda parte do livro e tudo fazem para manter incólume o seu estatuto perante a sociedade que frequentavam.
(…) foi dominada por aquela sensação verdadeiramente ministerial de superior compaixão e condescendência fastidiosa tão característica dos burocratas de Petersburgo. “Meu Deus! Que infeliz!”, pensou. “E ainda por cima parece que é coxo!” (pág. 219)
O fragmento inicial pertence a um poema escrito pela personagem principal, Nejdánov. A sua evolução ao longo do livro suporta aquilo que comummente se designa de “mensagem”, aquilo que eu entendo que Turguéniev pretende transmitir. A narrativa vai-se precipitando dolorosamente para a desilusão na segunda parte, a revolução iminente transforma-se num doloroso purgatório que durará umas dezenas de anos até o céu revolucionário se abrir e acolher os crentes com bonomia. Turguéniev não podia saber, mas previu que a resistência ideológica da população às investidas dos jovens intelectuais seria efémera, e cederiam pela necessidade e não pela crença.
É uma obra maravilhosa, marcante.
Também hoje se instrumentaliza o povo como força impulsionadora de uma revolução ideológica confortável paras as elites que a defendem, mas para o povo imune aos privilégios, as ideias não dão de comer.