Elogio à abstenção

Vote com prudência ou não vote. Se estiver zangado, beba água, passeie no monte, durma bem, mas fique longe das urnas.

O apelo ao voto é um exausto clássico de campanha. Mede-se a qualidade da democracia pelo número de eleitores quando, na verdade, quando um candidato apela ao voto, apela ao “voto em”, ou apela apenas ao comparecimento do eleitor; “o povo é sábio”, “foi uma festa da democracia”, “grande lição de maturidade democrática”, dizem eles, triunfantes, ao sair das urnas confrontados com microfones ansiosos.

A quantidade tende a comprometer a qualidade. O voto pelo voto nada acrescenta à democracia, pelo contrário, faz das eleições um concurso de popularidade (perdoem a falta de originalidade, que sempre macula a aferição do óbvio) em que as preferências oscilam ao sabor de episódios casuais – um protesto indignado, uma frase infeliz, a aparição de fantasmas do passado, um factóide pessoal, lágrimas de comoção com a recordação de um falecido gato de infância.

O voto obrigatório é uma abominação, um ritual de seita. Cá entre nós, que ninguém me lê, confesso que nestas alturas me ocorre a tirânica ideia da instituição de um Certificado de Habilitações do Eleitor; seria como a carta de condução, o certificado de toma da vacina do Covid ou um passaporte. Adiante.

Elegemos representantes a quem delegamos decisões sobre matérias que desconhecemos: fiscalidade, administração pública, justiça, saúde, etc. Todavia, se pouco ou nada sabemos sobre essa matéria como sabemos avaliar quem nelas é competente? Ou seja, como votar? Os passageiros votam no piloto do avião? Os pacientes no cirurgião? Não, é de competência que se trata, um sistema eleitoral não garantiria a competência do piloto, há processos de avaliação técnica. O mesmo não se aplica aos políticos? Governar não exige máxima competência? O erro de um piloto pode provocar morte imediata dos passageiros, mas decisões erradas na política podem causar um ainda maior número de vítimas – pensemos nas decisões em tempo de COVID.

Não se trata de opor outro sistema à democracia, chega de sistemas, a minha tese assenta na convicção de que não é o voto livre que solidifica um país, uma comunidade, mas o voto sábio. Não é saudável a ideia instalada no discurso público de que o acto de votar é mais válido do que o sentido de voto.

 

Bob Dylan no Coliseu do Porto

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Tenho algo a confessar em matéria de apreciação musical: não reparo nas letras das canções. A música apodera-se do meu aparelho sensorial, não há nada a fazer; palavras e notas surgem-me como duas entidades distintas. Por isso, leio em silêncio.

Todavia, tratava-se de um concerto de Bob Dylan; são declamações musicadas, entre o dito e o cantado, por uma voz rouca e anasalada , com o peso de um Nobel da Literatura que nunca li e pouco sei do que fala, para além do idealismo hoje pulverizado dos idos anos 60 – eu era um estrangeiro naquela sala, confesso-me, ah!, tanta coisa que não li ainda!

À entrada, os telemóveis eram enfiados numa bolsinha imediatamente selada por um fecho apenas desbloqueado pelos assistentes à saída. O público ficou a sós com os seus ouvidos. Não havia câmaras na sala. Compreendo Dylan: a sobre-exposição esbate o mito; mas apenas um protagonista rejeita o protagonismo. Foi uma das originalidades deste concerto, que assim nos transportou no tempo, até à altura em que não se assistia aos espectáculos através de um Iphone alheio. A qualidade acústica do Coliseu foi também uma viagem até à altura da grafonola. A sala merece obras.

Com o público ainda a procurar o seu lugar, a luz baixou, Dylan saiu detrás das cortinas, levantou a mão num aceno, e escondeu-se atrás do piano, ocupando no palco o seu espaço físico com movimentos mínimos. O resto da presença foi preenchida pelo imaginário da madura plateia, que trouxe para a sala memórias entusiásticas de tempos há muito mudados, e onde havia muito mais alegria do que no palco. A deferência para com o público não passou de um obrigado entre as músicas, e um boa noite no fim.

É preciso ser íntimo com o reportório do Dylan para não sucumbir ao peso da expectativa. Não tocou nenhum dos clássicos que sustentam o seu nome como a magna voz do folk americano; mas eu não tomo com despeito o snobismo do set-list, a estrada que já bateu e a aura de lenda permitem-lhe desprezar a desgastada tradição de satisfazer um público mimado com o conforto da familiaridade. Knocking on Heaven’s Door, Mr. Tambourine Man, Blowin’ In The Wind, etc, seriam fortes candidatos, mas até sinto quebrar algum protocolo com esta expectativa – parece haver um pacto de rejeição de músicas que parecem ter caído na vulgaridade. Porém, o reportório apresentado, embora firmado essencialmente em blues, e superiormente executado por uma excelente banda, era muito mais sofisticado harmonicamente do que a respeitável formula “three chords and the truth” popularizada pelo cantor.

Do ponto de vista cénico, a penumbra noir que envolvia o palco convocava para outra disposição que não a quietude que se testemunhou, mas o ambiente asséptico da sala, marca do puritanismo hodierno, onde não há fumo nem álcool, uma burocracia que nunca deveria contaminar a arte, inviabilizou a genuína experiência da estética cénica. A música de Dylan não bebe água.

Talvez me equivoque, mas no final vi um público porventura mais satisfeito com a presença na sala do que pela comunhão com o músico.

Haverá, porém, maior artista do que aquele que se retira do palco, deixando o público sozinho com a obra?

Cartas abertas e lugares fechados

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Ontem saiu na imprensa uma carta aberta dirigida ao Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, onde diversas figuras, “investigadores, profissionais de saúde e pessoas que usam drogas”, “repudiam as ações e declarações do município do Porto em relação à criminalização do uso de drogas”, a propósito das manifestações de Rui Moreira sobre a crescente inquietação dos residentes na zona do Campo Alegre com uma crescente vaga de assaltos e consumo de droga em locais frequentados pelos cidadãos daquela zona.

Recentemente, saiu na CMTV, e tem sido notícia em vários canais, uma reportagem que dá conta de um cenário que deveria envergonhar os cidadãos do séc. XXI, que deveria pertencer à triste memória dos anos 90 em matéria de drogas, uma espécie de “The Wire” da Pasteleira, onde é comprada e vendida droga a céu aberto, em esquemas semelhantes àqueles da série: um bairro social, um tipo sentado numa cadeira, um carro que pára, o tipo que se debruça na janela do carro, recolhe um pequeno maço de notas enroladas, vai atrás do prédio, regressa sigiloso e desconfiado segurando algo que enrega pela janela do carro quase sem abrir a mão, o carro parte; repete o processo.

A carta fala numa abordagem securitarista por parte da Câmara, mas em causa está a segurança, que é um direito absolutamente fundamental. Na carta são enunciados vários direitos que não contesto, mas todos eles têm de ser articulados com o direito de todo e qualquer cidadão poder sair à rua quando quiser, sem temer qualquer tipo de violência. Sem este pressuposto não há nem liberdade nem direitos.

Não contesto a abordagem compreensiva à toxicodependência defendida na carta, mas não se pode passar ao lado do problema, arrumando na prateleira reaccionária do securitarismo e “populismo chegano” uma preocupação com a segurança de residentes e estudantes, que deveria ser evidente e sem hesitações.

É aqui que começam os problemas. A carta posiciona-se num lado, cavando uma trincheira, já aberta pela Câmara do Porto; o espaço público vai-se distribuindo pelas trincheiras, perspectivando-se um debate ideológico, ficando o problema sem solução, e tendo em conta o agravamento da situação social do país, é de esperar que piore.

À volta da carta forma-se um tipo de discurso que denota ser a preocupação com a segurança um incómodo burguês, o branco de classe média que não quer a sua paisagem importunada com uns desgraçados a injectar heroína nos viadutos. É uma postura que aparenta superioridade moral e até, parece granjear alguma recompensa social e simpatia.

O Campo Alegre é uma zona do Porto onde estão as Faculdades de Letras, de Arquitetura, de Ciências, etc, o que implica a circulação de estudantes pelas redondezas. Os relatos de assaltos sucedem-se. Uma zona de polos académicos, onde há o Teatro do Campo Alegre, o Planetário, o Jardim Botânico, Serralves, etc, tem de ser um espaço saudável onde caminhar a pé não inspire receio.

O que fazer? Não sei, à Câmara compete agir, de preferência, em colaboração com as entidades que subscrevem a carta. É uma situação complexa, mas duvido as soluções passem quer pela criminalização do consumo em espaço público, quer no refúgio num discurso autista e paternalista – estou em crer que muitos se indignam mais com a utilização do “autismo” como adjectivo de algo que manifesta alheamento ao exterior, do que com o problema aqui em causa.

Este debate não se pode tornar no entretenimento mediático de uma batalha entre os bem-pensantes, luzes do progresso, contra os reacionários que saúdam com vivas o exército a marchar na rua.

Matrix ressuscita a internet dos últimos 20 anos

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Fazendo uma brevíssima leitura, é tentador analisar mais esta variação da série Matrix à luz da revolução cultural que triunfa em Hollywood, em que, Neo, mais conhecido neste filme por Tom Aderson – a dissolução do  protagonista começa pelo nome -, o grande herói da trilogia, afinal, não era o Escolhido; iludido pela fantasia masculina do campeador solitário, acabou por descobrir que o seu poder dependia da relação com Trinity, sozinho, é apenas um engenheiro-informático que não sente pertencer ao seu mundo, frágil, frequenta o psicanalista, confronta os seus medos; a empresa onde Tom (Neo) trabalha é gerida por um homem branco sem escrúpulos – um downgrade do Agent Smith-, e claro, o Matrix é o capitalismo, asserção que está para a filosofia politica como o arroz para os acompanhamentos: engorda e pode ser substituído por vegetais. A própria Trinity liberta-se do seu Matrix: o marido que se ri das suas ambições pessoais e dois filhos irritantes; ela própria é que detém o poder de voar e quem apoia Tom, que nunca recupera da sua crise existencial. O Matrix, afinal, não era uma congeminação das máquinas para dominar os humanos, mas do homem branco – os vilões são todos brancos.

Numa das frases mais interessantes da película, Niobi afirma que os habitantes de Zion, ao lutar contra um inimigo invencível, viviam no seu próprio Matrix, sendo a estratégia da nova colónia humana, sobreviver e recorrer à colaboração das próprias máquinas, em oposição à postura bélica e masculina dos anteriores líderes.

Mas este verniz woke é um tributo que qualquer obra cinematográfica que se proponha a ganhar umas centenas de milhões no mercado tem de pagar – a grande temática continua a ser o livre-arbítrio e a obsessão com a verdade, com o “real”.

O filme procura amalgamar as mais diversas referências culturais surgidas nestes 20 anos, parece um comentário ao seu predecessor de 1999 e da cultura que este gerou nas catacumbas da internet, onde o esquema blue pill/red pill constitui um binário epistemológico: a escolha entre a verdade ocultada pelas forças do poder, ou permanecer na ilusão e alinhar no sistema pois, se a primeira opção implica o sofrimento do real, a segunda é a confortável alienação. Tais conceitos estribam as diversas teorias da conspiração que entretém aqueles que defendem haver uma verdade não revelada, ocultada pelos media e grupos de interesse.

Squid Game

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How to Beat Every Game in Netflix's 'Squid Game'

Nesta série não há mais violência do que em um filme americano de Domingo à tarde. Só posso perceber os apelos ao cancelamento de Squid Game à luz de uma perspectiva acrítica, pois o cinema americano tem uma violência muito mais nociva, porque é lúdica, não se questiona, onde morte é cénica, é entretenimento, em que o herói vai matando figurantes identificados com o mal, estando assim absolvido das atrocidades que comete – basta pensar em Indiana Jones ou Star Wars. Em Squid Game, a morte tem um valor maior, é chocante, porque o humano entra em jogo, cada um tem significado, luta pela preservação da sua vida, não é um mero adereço que, pelo seu sacrifício, glorifica o herói que mata.

Alguma crítica aponta como premissa da série, a crítica ao capitalismo, naquilo que é um lugar-comum ganhador. Porém, todos as narrativas que colocam pessoas em situações de fragilidade extrema, jogando a sua vida a troco de uma soma de dinheiro salvífica, podem ser uma crítica ao capitalismo e à desigualdade, o mesmo se aplica ao filme Plataforma e afins. O assinalar de mercantilização capitalista das relações humanas é apenas uma primeira camada de análise, aliás, pouco interessante pelo lugar excessivo que ocupa na arte e até porque o lugar da acção tem como vizinhança a Coreia do Norte; o que aqui está problematizado é a resistência da ética à necessidade extrema, a reserva moral – quem não é vil quando a vida está em risco? Um marxista certamente alegaria que é o capitalismo que cria as condições que fundam o jogo, mas a luta pela sobrevivência precede qualquer sistema.

Não é uma série particularmente sofisticada no texto, o seu apelo assenta em grande medida no choque estético, quer pelo contraste das cores nas roupas das personagens e nos cenários simples, quer pelo grafismo macabro de cada jogo em que se antecipam violências atrozes. Sobram algumas narrativas paralelas sem grande sentido – aquele polícia infiltrado serviu apenas para forçar uma revelação chocante?

Porventura, o mais interessante de tudo são as motivações pessoais de cada jogador para aderir ao jogo e nele permanecer; os seus vícios, e como essa adição os arruinou e traçou o destino.

 

A blogosfera definhou?

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O ponto de interrogação é escusado, a resposta parece óbvia, a blogosfera parece uma peça do museu digital, e apenas eu, que ainda mantenho um blog com menos assistência do que uma palestra sobre a tradição doxográfica em Empédocles, é que ainda não se deu conta disso.

Contudo, se há incomparavelmente mais “consumo” de informação na rede do que havia no auge da blogosfera, não deviam ser os blogs mais populares do que nunca? Atentemos algumas estatísticas actualizadas sobre o crescimento dos blogs:

  • 409 milhões de pessoas acedem, por mês, a mais de 20 biliões de páginas;
  • Nos EUA, entre 2014 e 2020, o número de bloggers aumentou em 10 milhões;
  • Por mês, são produzidos cerca de 70 milhões de novos postos e cerca de 70 milhões de novos comentários;
  • 77% dos utilizadores de internet consomem blogs;
  • o WordPress suporta 39.9% de todos os sites.

Estes números não são um prenúncio de morte, mas de mudança, se se comparar aquilo que é blogar nos dias que correm.

Uma determinada forma de blogar, pessoal, confessional, dispersa nos assuntos, foi, em poucos anos, exilada para os subúrbios da internet, onde permanece anónima. As redes sociais de consumo rápido tais como Facebook ou Twitter, desviaram a audiência dos blogs, onde as publicações são mais fácil de digerir, sendo a reflexão longa reduzida a algumas frases, som e imagem.

Porém, esta concorrência é apenas uma parte da explicação. Os bloggers de antigamente dispersaram-se por outras plataformas: podcasts, canais de youtube, instagram, twitter, etc; muitos profissionalizaram-se, montaram um estúdio, um cenário, contrataram pessoal, investiram em equipamento de áudio e vídeo, elaboraram um conceito e sabem como apresentá-lo.

Surgiram novos segmentos, já especializados em temas, orientados a um público-alvo já definido, tais como o Everything Music do Ricky Beato, o Doug Elvering ou o EytschPi42 , estes dedicados a música ou a equipamento musical, mas os nichos são variados, o horizonte alargou-se.

Não contesto esta transformação, a internet é volátil pela sua natureza, mas causa-me alguma decepção a zona de guerra em que se transformou – dark web à parte – e na horda de moralismos que se ergue para a controlar. Dois muros que emparedam a liberdade.

Decepciona-me a consciência de marketing tomou conta do blogger que passou da reflexão para a “produção de conteúdos”, aquilo que um marxista chamaria de mercantilização (ou comodificação, aportuguesando o original inglês); de facto, segundo as estatísticas, 27% dos bloggers preocupam-se mais com o marketing do que com o conteúdo. Há uma mal-disfarçado esforço para agradar. Esta tendência é uma pauperização da blogosfera.

Tenho saudades da pessoalidade dos blogs; a dispersão dos temas nada mais reflecte do que a intrínseca fragmentação de cada um.

Escrever e publicar não é a manifestação de um ego inflamado que procura ser celebrado, ou de uma insegurança que procura validação; tal concepção reduz a ontologia humana à mera vaidade: escrever é construir no espaço entre nós, estamos condenados ao outro.

Posto isto, é minha intenção, que este blog, no futuro, sofra alterações. Quais? Ainda não sei.

The Last Dance

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Com a excepção da série All Or Nothing, que levantou um pouco do cortina nos balneários do Manchester City de Guardiola e Tottenham de Mourinho, estou convicto que dificilmente veremos um documentário sobre uma equipa da liga portuguesa de futebol em que são revelados comportamentos tão comprometedores como em The Last Dance, documentário da Netflix sobre a fase descendente da carreira de Michael Jordan nos míticos Chicago Bulls anos idos 90.

A opacidade que cobre o futebol nunca permitiria desocultar pela boca dos próprios intervenientes – tal como aqui se verifica-, aquilo que vai caindo às pingas nos jornais e dito à boca pequena em painéis de intriguistas – e como seria sumarento saber uma ou duas coisas sobre transferências ou ardis de balneário em épocas mal sucedidas.

O interesse do documentário sobrevive a quem, tal como eu, apesar de reconhecer a espectacularidade, abomina basquetebol – trauma de adolescência -, pois do próprio desporto apenas são mostradas jogadas sensacionais em play-offs decisivos, protagonizadas por personagens que transbordam o seu excesso muito para além da arena de jogo; são várias biografias que amiúde colidem no seu fulgor de viver.

Um sinal dos tempos que correm é a imediata comparação que me ocorre, quando, após os triunfos, ou apenas viagens entre as cidades dos jogos, os jogadores fumam e bebem sem pudor para com as câmaras, como se as suas façanhas atléticas lhes garantissem uma imunidade que nos dias de hoje, seria imediatamente levantada, invocada a moralidade asséptico do teclado. O que seria de um Ronaldo ou de um Messi – aliás chatíssimos – se puxassem de uns fumos e emborcassem uns copos, o mau exemplo para as crianças e para a sociedade, caíam em desgraça tal a perfídia, Deus nos livre e guarde.

A exigência por uma conduta inapelável faz das figuras mediáticas, aquelas que se destacam por alguma proeza, representantes de uma perfeição abstracta, cujo desvio da convenção implica a pena do degredo social. Não admitir o erro do outro é uma forma de desumanização.

A rebeldia de Jordan é inseparável da sua grandeza.

 

Woodstock 99 – um documentário novo, a narrativa de sempre

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Desviando-me do exercício mental de manutenção de sanidade que tenho praticado ultimamente, que vai desde o simples arredo de algumas parangonas até à mais sincera indiferença pela hiper-realidade mediática, confesso que vi e irritei-me com este documentário

Na fatídica edição de 1999 do mítico Woodstock contam-se três mortes, várias violações, detenções e violências surtidas. Um festival em que a multidão, sobre  o asfalto de uma base militar abandonada, suportou a brasa de 40 graus sem sombras que lhes valessem um alívio – nem árvores nem o rio Coura; a escassa água custava o mesmo que a cerveja – a opção geral recaiu, sem surpresa, na segunda; da casa de banho fluía uma nascente de trampa que vazava sem que os inúteis esgotos a contivessem; a sujidade acumulava-se; o alinhamento das bandas contava nos mesmos dias convivências improváveis: Sheryl Crow com Korn ou Alanis Morissete com Metallica; a segurança era frágil – alguns despiram a farda e misturaram-se com o público, etc. Uma organização catastrófica, mas de quem foi a culpa? Miúdos brancos que encontraram na agressividade da música o veículo para expressar toda a sua raiva.

A beatice contemporânea, mal disfarçada, vai beber na pior tradição do conservadorismo religioso, a falácia com a qual o metaleiro convive desde sempre; recorrendo a outras palavras e aparatos conceptuais, é veiculada neste documentário a tese da música pesada que desvia os jovens do caminho da virtude. E esta virtude foi aquela do Woodstock de 69 – ainda que, com justiça, neste mesmo documentário foi referido não ter sido o paraíso de amor e paz que cultura conserva na memória -, célebre festival que serviu de contraponto entre uma geração sonhadora e pacífica em contraste com a escória que se lhe seguiu – resta explicar que foi a primeira que educou a segunda.

Não há desculpas para estes actos, e não vou ser eu a defender Limp Bizkit que, agravando com incitações à violência do Fred Durst ou Kid Rock, poderia ser a banda sonora de um acto de bullying, mas neste documentário foram amalgamadas as circunstâncias e nomeado o compósito resultante de fenómeno cultural.

Ora, se este fenómeno da juventude branca violenta acicatada pela distorção da guitarra fosse minimamente consistente, concertos de Slayer ou de Sepultura seriam autênticos massacres. Tal não se verifica. A leitura é errada, mas cada um formule o seu julgamento, porque em matéria de narrativas, não há duas iguais. Fiquemos por aqui. Já passaram vinte anos, e nem sinais dessa malta que desata à lapada mal ribombe a Call of Ktulu.

Herborizar 2021

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feira do livro porto 2021

«Para que nos sintamos confortáveis, por favor, conservem a máscara colocada».

…era dito através do speaker do auditório da biblioteca Almeida Garrett; uma voz educada, sóbria, com a serenidade de quem opera algo de cirúrgico no nosso cérebro.

Noção de conforto talvez adulterada por aquilo que, a dada altura, se convencionou chamar de “novo normal”; uma amálgama de medo, ignorância, lassidão democrática e pulsão para a delação. Há pessoas que nunca tiram a máscara, a pandemia apenas sublinhou um traço de personalidade.

Uma ordem mascarada, imediatamente antes da apresentação do mais recente livro do Afonso Cruz, autor que já ouvi um par de vezes, mas que nunca li. O seu talento para a palavra é óbvio, mas tem uma doçura que, para já, me afasta dos seus livros. Adiante.

A Feira do Livro do Porto deste ano não contou com o tipo de debates que a enriqueciam, pois este evento não se limita a expor ao pó da Alameda das tílias do Palácio de Cristal, aquilo que durante o ano reside nos escaparates das livrarias, é também a exposição pública e reflexão por parte daqueles que produzem livros. Ainda assim, algumas palestras são de aproveitar.

‌Júlio Dinis foi o escritor homenageado desta edição, porém, nos vários stands que percorreu, a sua obra não se destacava. Diz-se  por aí que é um escritor lido demasiado cedo – concordo. É um belíssimo autor, mas carece de alguma maturidade por parte do leitor, para que compreenda as idiossincrasias do século XIX e se saiba situar. É sempre assim, mas se os miúdos não forem expostos na escola à obra literária, não é garantido que em casa usufruam desse privilégio e, afirmo com poucas dúvidas, necessidade. Consta que o escritor era um herbário, daí o mote da Feira.

No stand de bebidas serve-se uma sangria misturada com aquilo que à primeira vista me pareceu água, mas veio a revelar-se ser 7up sem gás – não questionei, nesta matéria o barman é soberano, mas a minha expectativa para este refresco envolve frutas e álcool.  Sabia a callipo derretido em vodka. Já ia desconfiado, mas o stand desafiava o som ambiente da feira com um concerto de Steve Vai emitido por um telemóvel. Assim sendo, sou até capaz de tolerar cerveja quente em copo de plástico. Eram três da tarde. Já na sombra das Tílias soava do tal sítio Eric Clapton, Jeff Beck e Jethro tull. Pena a sangria saber a fim de festival.

Enquanto folheava livros comprados com alguma compulsão, distraía-me com pombas que aterravam com urgência, competindo pelas migalhas recolhidas da orla de um pastel de nata e atiradas maternalmente por uma senhora sentada no canto de um banco. Lá ficaram em bando, afoitas, a picar o chão, sentido de vida livre de angústias existenciais – tomara a filosofia lograr tal convicção.

Uma batelada gasta em livros, nenhuma pechincha. A Relógio d’Água é o fornecedor do costume, todos os anos sai de lá um clássico para ler com a chuva de Outono. Algumas surpresas nos alfarrabistas.

Como disse o Gonçalo M. Tavares: se a feira do livro de Lisboa é um lugar para se passar, na feira do Porto é para se estar. Assino.

Turning Point 9/11

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Este é, provavelmente, o melhor documentário sobre o evento que deu início ao séc. XXI mediático.

O violento imaginário destes vinte anos, em grande medida, foi cultivado no terro estético daquele embate contra a segunda torre do World Trade Center, capturado em directo pelas televisões do mundo, destino trágico do voo United Airlines Flight 17.

Desde aí, a criação artística do mainstream procurou uma hiper-realidade que oblitera qualquer ficção, incapaz de competir com a rudeza do real revelado em telejornais alarmados, a não ser pelo endurecimento, pela obscuridade dos temas, regressando a uma origem violenta, tal como se verificou na música deste século, ora pesada e crua, ora acéfala e alienada.

Conservando a sobriedade, sem se comprometer com teorias da conspiração, nem com a narrativa de vingança propalada por um dos lados da barricada política, nem com o outro lado que, sem relutância – e mal disfarçada satisfação em alguns casos -, afirmava terem os EUA  provocado a ira dos terroristas com a sua política externa, o documentário dá conta de testemunhos dos vários intervenientes que, directa ou indirectamente, foram afectados pelo 11/09 – sobreviventes, polícias, bombeiros, soldados, políticos, etc.

O que seguiu ao 11 de Setembro foi o securitarismo que rege política hodierna; o maniqueísmo que presidou à discussão no início do século, sedimentou-se no espaço público contemporânea por via da cultura woke, em si também um conjunto de conspirações sofisticadas e revestidas com o patine da filosofia. A cultura vigilância inscreveu-se nas mentes actuais, dispostas à denúncia, à delacção. O regime COVID demonstra esta tendência. Tudo pelo bem de todos. Afinal, preferem que um filho vosso viaje num avião em que todas as malas dos passageiros foram devidamente inspeccionadas ou que, a expensas da preservação da privacidade, sejam relaxas as medidas de segurança? Relembro que antes do 11 de Setembro, podia-se levar um pequena faca a bordo. A partir daí, nem dentífrico em embalagens grandes podia seguir.

Talvez nenhum outro evento foi sujeito a tanta especulação; popularizaram-se as teorias da conspiração, especialistas frequentavam os vários painéis de comentariado, entretinham-se com os detalhes difíceis de explicar, pois os teóricos da conspiração vasculham na complexa teia de acontecimento donde podem sempre formar nexos de causalidade libertos da responsabilidade da prova. A teoria da conspiração alimenta-se da dúvida, nada demonstra; o difícil de explicar é a sua confirmação. A realidade é espantosa; as teorias da conspiração apenas reflectem esse espanto.

Conspiradores deste mundo, leiam o falsificacionismo de Karl Popper.

Narrativa fulcral para compreender o fenómeno, é a História recente dos países muçulmanos onde o Ocidente tentou plantar as sementes do seu “modo de vida”, democrático e liberal, mas sem compreender uma cultura milenar, recusando aquilo que o pós-modernismo sóbrio proclamara: as narrativas são múltiplas, a realidade não é absoluta. Um Afeganistão fustigado pela invasão Soviética, armado e treinado pelos EUA, uma cultura cujos aspectos menos consentâneos com a ética ocidental foram extremados, apenas poderia resultar na catástrofe que estas décadas dão conta. Como é evidente, estamos a falar de aspectos muito gerais da História – deve ser guardada uma enorme reserva quanto aos julgamentos dos acontecimentos.

Para mais algumas pinceladas sobre o Afeganistão, a RTP3 exibiu recentemente um interessante documentário: Afeganistão: A Terra Ferida. Neste, são apresentadas com mais detalhes as sensibilidades político-religiosas daquele país desde os anos 60, quando as ideias ocidentais lá entraram pelas vias de comunicação construidas por americanos e russos. O poeta Masood Khalili dá conta desses tempos.

Estava a fazer o meu doutoramento na Índia. Estava tão contente por ter o meu doutoramento e ser tratado por Dr. Masood Khalili. Fui o primeiro da minha família. Uma noite, recebi um telefonema.
O que estás a fazer, meu filho?
Estou a fazer o meu doutoramento, pai, e passarei a ser o Dr. Masood Khalili.
Já soubeste que os comunistas assumiram o comando?
Sim.
Enquanto o teu povo luta pela liberdade, estás a fazer o teu doutoramento?Amas a tua terra?
Sim.
A tua casa?
Sim.
Foi ocupada.
Sim.
Não, filho, junta-te ao teu povo. Luta pela liberdade. Tira o doutoramento nas montanhas do Afeganistão, na universidade do povo.
Ao fim de uma semana, estava nas montanhas. Agradeço ao meu pai por me dizer para eu me juntar à guerra da libertação e ter ajudado o meu povo quando era jovem.

 

Iron Maiden – Senjutsu

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Munido de algum cinismo, diria, após uma primeira audição, que o novo álbum de Maiden, Senjutsu, não se emancipa da mesmice. Terminado em 2019, mas adiado o seu  lançamento devido à pandemia – e eles precisam de fazer dinheiro com a tour que logo se segue ao lançamento de um álbum novo – o novo álbum é atirado do Olimpo do Metal cá para baixo.

Uma segunda audição faz-me reconsiderar um julgamento que já estava engatilhado – como qualquer fã antigo de metal, sou um idiota preconceituoso. Ainda assim, Iron Maiden, como talvez mais nenhuma banda nascida em finais dos anos 70, capitaliza uma nostalgia que, porém, a submerge em clichés musicais. Críticos ou fãs, recorrem sempre à discografia brilhante dos anos 80 para comparar o restante trabalho da banda, e sendo assim, a avaliação será quase sempre desfavorável. As progressões que o ouvido de pedra dos metaleiros esperam ouvir estão presentes em todas as músicas, o clássico I-VI-VII, mais concretamente, a progressão Em-C-D. Faça-se justiça às decisões harmónicas do metal: a tonalidade de Mi menor é muito conveniente aos guitarristas. Claro que o new-metal subverteu toda esta lógica ao descer a afinação e acrescentar cordas mais graves, mas o princípio é o mesmo: ganhar peso no som.

Quando ouvi o primeiro single, “The Writing on The Wall”, desconfiei logo que a sua secção dos solos seria o ápice do álbum: não me enganei. Já aqui o afirmei antes e repito: Maiden é uma enciclopédia do bem tocar guitarra. Dave Murray e Adrian Smith estão em grande forma; os dois extensos solos que apresentam neste single são disso prova inequívoca desse pedigree guitarrístico.

Mais do que o último, Book of Souls, e muito mais do que o penúltimo álbum, The Final Frontier, este álbum tem pontos de interesse aos quais valer a pena regressar em audições futuras. O refrão da primeiro música, “Senjutsu”, já faz antever algumas melodias um pouco à margem do clássico Maiden. A conjectura confirma-se em “Lost in a Lost World” e “The Time Machine”. Interpolados com harmonias e melodias clássicas da banda, há melodias pouco comuns nestas faixas em particular, contribuição dos vocais do Bruce Dickinson. Isto para não falar da introdução de “The Parchment”, que imediatamente me remete para o Bolero de Ravel.

Na segunda parte do álbum constam os épicos do Steve Harris que, nestes últimos álbuns, ao longo de faixas com mais de 10 minutos, explora temas épicos baseados em episódios de batalha ou de inspiração céltica, espraindo-se em largos minutos de instrumental – um clássico dos últimos álbuns. Na realidade, com excepção de alguns momentos, estas três últimas músicas não acrescentam muito ao legado musical da Besta. A sua atmosfera e tonalidade constante aborrecem pela repetição. Há quem acuse o produtor Kevin Shirley de não ter autoridade para chamar a banda à razão, muito devido à manutenção do bom ambiente entre os integrantes de Maiden, que não estão para aturar as suas ideias sonegadas, crescendo assim as composições para acomodar todas as contribuições evitando-se desta forma os conflictos. Especulações  novelísticas que apimentam as histórias das bandas.

Alguns reviews deste álbum aproximam-no ao The X Factor, controverso disco dos idos anos 90 quando o injustiçado Blaze Bailey era o vocalista, pelo entorno sombrio e andamento lento. Creio que é um juízo fundamentado, mas este álbum é bem melhor – excepto na capa -, principalmente na secção das guitarras. Diria que parece sujeito a um filtro que lhe remove a alternância de emoções, é um álbum plano. Em suma, não desilude, mas não surpreende, o que, em boa verdade, são sensações impossíveis de causar em fãs que ouvem a banda há mais de 20 anos; vivem num paradoxo, não estão dispostos as grandes mudanças, ao mesmo tempo que acalentam a possibilidade de sentir a mesma surpresa da primeira vez que escutaram este milagre sonoro que é Iron Maiden – é frustrante, mas não se repete.

Ainda havemos de nos sentir orfãos, nós que escutamos aquela música forjada nas caldeiras de Black Sabbath no inicio dos anos de 70, quando desaparecerem estas grandes bandas. Aliás, as únicas – enumerem-me as grandes bandas nascidas após 1990 que ainda persistem!

O “paradigma” – como  agora se diz, mas já em LESI se tinham apercebido do poder expressivo do termo – mudou; as rádios já não são o último reduto dos grandes hits, a lista das mais ouvidas do Spotify é cada vez mais homogénea e efémera: cada vez são menos os artistas que pontuam nos tops e durante menos tempo. Passou o tempo dos colossos musicais. Há quem diagnostique a estupidificação da gente, mas é uma asserção superficial – a arte contemporânea merece uma reflexão mais profunda.

Adenda: tenho notado,nas inúmeras reviews que vão surgindo, alguma aversão à duração das músicas. Fãs de metal a queixarem-se da duração de músicas é como adeptos de futebol a queixarem-se da quantidade de passes do Barcelona de Guardiola.

Smith/Kotzen

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Da colaboração entre os guitarristas Adrian Smith (Iron Maiden) e Richie Kotzen (Poison, Mr. Big, The Winery Dogs) resulta este álbum. Rock da velha escola onde quem manda são as guitarras.

São ainda espasmos de um estilo que definha nas mãos dos seus saudosistas, mais próprios de calçar pantufas do que vestir casacos de cabedal? Too old to rock n roll, to young to die? Não.

São testemunhas da superior exigência artística de se ser bom no que se faz, não são artistas forjados pela edição. Do ponto de vista guitarrístico, estes dois singles que se conhece são lições de bom gosto.

(Mais uma vez incorro no cinismo medíocre de aproveitar algo de bom para rejeitar o que se lhe opõe, o passado virtuoso contra o presente duvidoso. Adiante.)

Quem conhece ambos os guitarristas não se surpreende com nada, nem com a voz do Adrian Smith que já fazia vocais de apoio em Maiden. Talvez o som de guitarra (um crunch mais próximo do hard-rock do que do heavy) de Smith estranhe a um ouvido habituado a um peso maior nos inexcedíveis  álbuns de Maiden em matéria de timbre do nobre instrumento.

Por estes dois singles, quem aprecia o rock clássico, pleno de blues, não se desiludirá.