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Academia, Associação de estudantes, Braga, Caloiros, Integração, Praxe, Universidade, Universidade do Minho
Não pode ser pior o momento para falar deste tema, mas separe-se o trigo do joio, escolha-se o joio, justiça à Justiça, falarei do que sei, as crucificações devem-se restringir às páginas da Bíblia.
Setembro de 2001, não passava muito das oito da manhã quando entrei na Universidade do Minho, era o primeiro dia dos muitos mais do que expectáveis que se seguiriam. Pelo caminho encontrei um conhecido que, para seu gáudio, me encaminhou para junto de um grupo de bestas que se encontrava alinhado em frente ao Prometeu, a julgar pela constante curvatura da cervical, apanágio anatómico da caloirada, todos eles admiravam com espanto as fivelas dos sapatos que os engenheiros envergavam segundo rigorosas regras de indumentária.
Integrei o grupo e também eu passei a ostentar o nobre título de cavalgadura. O grupo foi engrossando e quando demos por ela, estávamos arrumados nas prateleiras de um anfiteatro. Grande parte da manada estava estupefacta perante a estranha simbologia que o prof. JBB desenhava no quadro, a parte restante sabia que aquilo era programação. O bando seguiu pela universidade fora, labirintos impercetíveis de escadas, salas e corredores; escutando com atenção os salutares conselhos para a edificação do mérito académico “Ali é onde vais ter Discreta, ali é onde vais ter Análise. Vais faltar às teóricas porque não é preciso ir, e vais chumbar, porque é o que acontece a toda a gente.”. Na mão segurava uma folha A4 no estado possível que o bolso de trás das calças de um caloiro permite, onde estava cifrado um horário que, por eu ser uma besta, não compreendia bem o sistema dos turnos práticos, a explicação fora dada com decibéis suficientes para perpetuar o enigma por mais algum tempo. Os tais turnos práticos eram objecto de desgarrada disputa, a necessidade de os evitar na sexta-feira à tarde ou quinta-feira de manhã imperava sobre a norma da ordem de chegada. A julgar pelo ar aterrorizado da professora vietnamita de Álgebra, talvez tenha temido que o próprio Pol Pot tivesse encarnado naquela assuada que invadiu o palco do anfiteatro, derrubando a mesa do professor na ânsia de juntar o turno desta cadeira aos outros marcados para o início da semana, deixando os restantes dias para regurgitar o enjoo licoroso da cevada pastosa servida torrencialmente ao longo de largas noites no bar académico.
A tradição académica prosseguiu com um conjunto de exercícios colectivos de treino para as denominadas guerras de curso onde a arma eram berros em alta voz, versões brejeiras de famosas canções, culminando num conflito sempre ganho pelos cursos maioritariamente femininos, bastando que para isso invocassem medidas anatómicas comprometedoras, ou raro uso do objecto escrutinado, nós jurávamos o contrário. O ritual prolongou-se durante meses, coroado com um banho gelado no chafariz da Avenida Central de Braga, e uma perseguição policial na noite que antecedeu a Latada.
A inteligibilidade de toda aquela situação foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Nunca me senti tão desintegrado como naquele primeiro ano de universidade. Eu tinha uma ideia romântica da universidade, como um pólo de cultura e conhecimento por excelência, onde os alunos procuravam saber mais do que lhes ensinavam, onde alargavam o espectro cultural para além das áreas específicas do curso. Esta utopia é possível, mas é preciso ter uma estrutura mental forte para desbravar a inércia cultivada pela maioria. Há uma espécie de terraplanagem da forma de ser do estudante universitário, a curiosidade torna-se numa extravagância, a praxe surge como o preenchimento de um vazio que a cultura universitária não é capaz de preencher. A maioria das pessoas que passaram pela universidade também desperdiçaram essa oportunidade, mas ainda não deram por isso, também essa inconsciência é um sintoma desse vácuo. Não se pode ser demagogo nesta questão, a entrada na universidade, por si só, não opera uma mudança radical de mentalidades lapidadas por uma repulsa colectiva pelo espírito critico descomprometido, e um sistema de ensino cada vez mais orientado aos objectivos e outros vazios conceitos que tais, oriundos do evangelho da Igreja Universal do Reino do Empreendedorismo. Por exemplo, volto a insistir neste ponto, não se dá a devida importância ao rastreio vocacional a que cada estudante devia estar sujeito numa fase muito precoce da sua vida académica, um facto que agrava ainda mais um sentimento de incompletude e desorientação que, durante a vida profissional se transforma em mediocridade, falta de motivação e realização pessoal. Exame interior? Também.
A praxe em nada contribui para edificar a cultura académica, muito pelo contrário, reduz-lha a um conjunto de práticas infantis, mas o meu maior desapontamento e critica não é direccionado à praxe, é a ausência de alternativas, de mecanismos de integração, da demissão da universidade dessa responsabilidade e, principalmente, a ausência da associação de estudantes neste processo, sempre ávida de votos e distribuidora de autocolantes, manifestando-se apenas sentada à mesa de votos em altura própria, um, berçário indecoroso dessa mediocridade que são as Jotas.
Uma das consequências da ausência de mecanismos alternativos de integração é a subtil marginalização daqueles que não estão dispostos a alinhar na rambóia. Vamos ser muito claros, para pessoas que não conhecem a cidade para onde vão viver, deslocados do ambiente familiar, numa situação psicológica frágil porque a entrada na universidade pode ser avassaladora e definitiva para o rumo da vida, sem rede de conhecimentos, serem iniciados à vida universitária com um tipo qualquer a berrar aos ouvidos as mais criativas abjecções verbais. A maioria das amizades que fiz na universidade aconteceram fora da praxe, fiz este exercício de memória, no entanto, a praxe establece uma vivência comum que desbloqueia a conversa e pode proporcionar à criação de amizades. Partir dessa premissa para concluir a integração e tudo o que esse processo representa, é um insulto à inteligência.
Como de costume, este tema foi tido como combustível para o lume brando da introspecção colectiva. Aproveitou-se o embalo de uma semana em que Passos Coelho afasta Marcelo Rebelo de Sousa e Pinto da Costa afasta António Oliveira das respectivas presidências, para sublinhar o “respeitinho” que devemos pesar antes de levantar os olhos. É um fenómeno argumentativo interessante, considerar a praxe como o embrião, ou manifestação circense da obediência cabisbaixa com que o povo português traja a albarda. É um sofisma e ameaça desequilibrar-se do trapézio ideológico. Fôssemos assim comprometidos com o que fazemos e outro nome teriam de ter as terras lusas, a simbologia da praxe não tem mais nenhuma carga para além da irresponsabilidade e indiferença. José Gil afirmou no seu belo ensaio sobre o nosso medo da existência que “(…) a não-inscrição (…) é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência.” A praxe não se inscreve em nada, não tem nenhuma simbologia para além daquela escrita nas testas dos caloiros, nada acontece, ninguém se responsabiliza, nada se inscreve.
Algumas opiniões interessantes do José Pacheco Pereira e do Vasco Pulido Valente sobre este tema, armações de clave da polifonia opinativa nacional, podem ser consultadas aqui e aqui.