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Tenho algo a confessar em matéria de apreciação musical: não reparo nas letras das canções. A música apodera-se do meu aparelho sensorial, não há nada a fazer; palavras e notas surgem-me como duas entidades distintas. Por isso, leio em silêncio.
Todavia, tratava-se de um concerto de Bob Dylan; são declamações musicadas, entre o dito e o cantado, por uma voz rouca e anasalada , com o peso de um Nobel da Literatura que nunca li e pouco sei do que fala, para além do idealismo hoje pulverizado dos idos anos 60 – eu era um estrangeiro naquela sala, confesso-me, ah!, tanta coisa que não li ainda!
À entrada, os telemóveis eram enfiados numa bolsinha imediatamente selada por um fecho apenas desbloqueado pelos assistentes à saída. O público ficou a sós com os seus ouvidos. Não havia câmaras na sala. Compreendo Dylan: a sobre-exposição esbate o mito; mas apenas um protagonista rejeita o protagonismo. Foi uma das originalidades deste concerto, que assim nos transportou no tempo, até à altura em que não se assistia aos espectáculos através de um Iphone alheio. A qualidade acústica do Coliseu foi também uma viagem até à altura da grafonola. A sala merece obras.
Com o público ainda a procurar o seu lugar, a luz baixou, Dylan saiu detrás das cortinas, levantou a mão num aceno, e escondeu-se atrás do piano, ocupando no palco o seu espaço físico com movimentos mínimos. O resto da presença foi preenchida pelo imaginário da madura plateia, que trouxe para a sala memórias entusiásticas de tempos há muito mudados, e onde havia muito mais alegria do que no palco. A deferência para com o público não passou de um obrigado entre as músicas, e um boa noite no fim.
É preciso ser íntimo com o reportório do Dylan para não sucumbir ao peso da expectativa. Não tocou nenhum dos clássicos que sustentam o seu nome como a magna voz do folk americano; mas eu não tomo com despeito o snobismo do set-list, a estrada que já bateu e a aura de lenda permitem-lhe desprezar a desgastada tradição de satisfazer um público mimado com o conforto da familiaridade. Knocking on Heaven’s Door, Mr. Tambourine Man, Blowin’ In The Wind, etc, seriam fortes candidatos, mas até sinto quebrar algum protocolo com esta expectativa – parece haver um pacto de rejeição de músicas que parecem ter caído na vulgaridade. Porém, o reportório apresentado, embora firmado essencialmente em blues, e superiormente executado por uma excelente banda, era muito mais sofisticado harmonicamente do que a respeitável formula “three chords and the truth” popularizada pelo cantor.
Do ponto de vista cénico, a penumbra noir que envolvia o palco convocava para outra disposição que não a quietude que se testemunhou, mas o ambiente asséptico da sala, marca do puritanismo hodierno, onde não há fumo nem álcool, uma burocracia que nunca deveria contaminar a arte, inviabilizou a genuína experiência da estética cénica. A música de Dylan não bebe água.
Talvez me equivoque, mas no final vi um público porventura mais satisfeito com a presença na sala do que pela comunhão com o músico.
Haverá, porém, maior artista do que aquele que se retira do palco, deixando o público sozinho com a obra?