Naqueles dias, Miguel Ângelo esculpia o busto de um animal num bloco de granito quando foi abordado por uma criança que o questionou assim: “Como sabes que dentro dessa pedra está a cabeça de um cavalo?”.
É por ouvir falar sobre o interior das pedras que eu frequento festivais literários como o LEV, leio livros, ouço música ou vou a concertos; não há qualquer lirismo de uma busca pela resposta definitiva, apenas contemplação e prazer.
No sábado, o primeiro dia de festival na biblioteca Florbela Espanca em Matosinhos, estava marcada a apresentação do livro “Viagens Pagãs” de Fernando Dacosta, mas ocorreu de tarde à hora que cheguei, e ainda pude ouvir o grande contador de histórias a falar do avesso de Portugal no século passado.
Os temas sobre a mesa deste primeiro dia eram sugestivos, mas os conferencistas não estavam particularmente inspirados. Uma das conversas tinha como mote: “Depois da morte das ideologias, o mundo divide-se entre cat persons e dog persons?”, acabou por ser uma palestra sobre comportamento animal; o tema não tinha grande potencial, mas esperava algo de menos literal. A mesa que debateu o tema do Bem e do mal, Bruno Vieira Amaral e Joel Neto, foi um pouco sovada pela audiência no momento de fazer perguntas, com o argumento de não estarem bem preparados para o tema. Ninguém está preparado o suficiente para um tema tão primordial na arte. Foi-lhes até apontado defenderem uma ética protestante, coisa pouco popular nos dias que correm e nesta geografia dos olivais. Inicialmente, foi questionada a razão de não haver personagens absolutamente maus na literatura portuguesa; a resposta é porque limitaram a procura à boa literatura, porque essa move-se traçado sinuoso entre o bem e o mal, à margem dos maniqueísmos.
No segundo dia do festival cheguei bastante antes da hora, e começa a tornar-se num hábito a cautela exagerada com a pontualidade, mas antecipava um dia bastante concorrido e, dado o reduzido número de lugares sentados, não queria arriscar três horas seguidas em pé; até porque esta constante dor na perna esquerda que o ortopedista que visitei no sábado passado desconfia ser uma hérnia, ensombra as minhas capacidades anatómicas. Portanto, maleitas e livros, é uma premonição de velhice, resta-me por uma manta sobre as pernas.
No segundo dia, Gonçalo M. Tavares aparenta um desmazelo na roupa (sentou-se com o casaco vestido apenas numa manga e assim ficou) inversamente proporcional à sua clareza de raciocínio que partilhou com Francisco José Viegas. “Afinal o que é a política? Para mim está ligada à cidade e não aos partidos.”, afirmou GMT. A literatura é perversa, pois verso é o que está por detrás do visível, perverso é percorrer o verso. A coisas mais perigosa é quando alguém diz o que é bom para nós.
Mário Cláudio, sábio e bem-humorado e um grande conversador, tinha como tema os conflitos se geram durante uma vida literária, mas preferiu falar naqueles que se gerem e na margem de aleatório de que necessitam para a sua resolução. Um escritor expõe-se na razão directa daquilo que oculta, e a inveja é o sentimento mais difícil de ocultar.
João Pereira Coutinho e Rui Tavares falaram de esquerda e direita. “Recuso uma ideologia política que tem a solução antes de conhecer o problema”, disse o primeiro, e tendo a concordar. “Há uma questão estética na diferença entre direita e esquerda”, disse Rui Tavares e também concordo.
Saúdo as várias referências aos autores russos neste festival, nem sempre acontece. Além disso, ao contrário do Correntes D’escritas que também é um bom festival, nas mesas debatem-se os temas, não são lidas apresentações; obviamente, um melhor formato, mais propenso a conflito, mais estimulante.