Viagens Oníricas

~ "Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer."

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Tag Archives: comunismo

À falta de ética, remete-se o julgamento para a História

27 Sunday Nov 2016

Posted by Pedro Araújo in Digressões

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óbito, comunismo, cuba, Ditadura, Fidel Castro, Liberdade, PCP, política

a História avaliará os méritos e os deméritos do papel de Fidel Castro e da natureza do regime

Esta citação de uma declaração de Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, sumariza um conjunto de reacções que, por uma ou outra razão, perante uma ditadura mostram uma condescendência pouco saudável, e em muitos casos, uma admiração candente quer pelo líder histórico, quer pelo regime uni-partidário. A liberdade é um princípio muito frágil, tendo em conta a quantidade de pessoas que estão dispostas a abdicar dela para satisfazer a sua libido ideológica.

“Houve fuzilamentos, mas está bem, quando é que houve fuzilamentos? Nos EUA ainda há pena de morte, mas em Cuba já não há fuzilamentos.”, dizia alguém esta manhã na sicn, com uma comoção que não se desfez em lágrimas talvez pelo pudor que as câmaras impõe.

“Pátria ou Morte, Venceremos! Socialismo ou Morte!”, esta frase rematava os discursos de Fidel Castro e significa muito mais do que aquele romantismo revolucionário que tanto atrai sensibilidades apaixonadas; significa uma imposição sem concessões, é uma questão de vida ou morte: a não adesão a esta ideia significou o exílio ou a morte de muita gente. O regime de Fidel foi uma ditadura, e não é preciso que esperar pelo tribunal da História para fazer esse julgamento.

O castrismo não foi um bom filme, foi má realidade.

Eu também não gostava de ver o Macdonald’s espalhado por Havana e a música cubana substituída pela batida panasca de Justin Bieber; mas não conheço cubanos, a sua opinião tem pouco eco, devem ser eles a decidir; deve prevalecer a rua caribe sobre a instrumentalização de um povo pelos privilegiados urbanos com os seus cartazes.

 

Uma espécie de TIDE académico

30 Monday May 2016

Posted by Pedro Araújo in Digressões

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antónio araújo, comunismo, Fascismo, José Rodrigues dos Santos, público, política

Não foi necessário um dote oracular para adivinhar que José Rodrigues dos Santos (juro que este blogue não pretende homenagear o indivíduo) não esperaria muito tempo pela chibatada intelectual, mas a porfia já tinha a culatra puxada atrás e disparou o escárnio com propriedade.

O jornal Público, que alberga estas bengaladas e por isso é um jornal que ainda mantém alguma erecção, publicou hoje duas crónicas que atiram para o lamaçal da irrelevância as grandes questões que preenchiam a agenda mediática, tais como as considerações estéticas de José Cid sobre os nativos do nordeste português.

Primeiro, foi António Araújo. E desde já faço-lhe a devida saudação onomástica pois tem o mesmo nome que o meu, já falecido, avô. Este historiador que não está pelas medidas quanto a desvios do discurso oficial, e no seu artigo de hoje sopra o pó dos calhamaços que desmentem, com régua e esquadro, a cândida teoria de JRS.

Se JRS não edifica o seu mérito académico em matéria de historiografia política, certamente vende mais alguns exemplares.

Por favor, mantenham a discussão acesa porque, temperada com uma garrafa de vinho, é um pitéu de que me lambuzo.

Rui Tavares também não resistiu, e integrou a procissão de indignados académicos, embarcando na contenda a opinião de Assunção Cristas sobre este enjoativo e demagógico conflito entre escola privada e pública, e as declarações de Schäuble sobre as sanções a Portugal. Apelou à paciência divina, mas equivocou-se no substantivo, porque  coisa é para rir.

É curioso perceber que a indignação académica não deixa de transparecer um certo saudosismo,o equivalente em minudências teóricas ao “no tempo do velho não havia esta pouca-vergonha”; uma esperança na amnésia histórica que tem tanto de ingénuo com de bárbaro. Uma lavagem através do escárnio intelectual. E até têm razão! Haverá tragédia mais cómica?…

Pelo menos, espalha brasas

29 Sunday May 2016

Posted by Pedro Araújo in Digressões

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comunismo, Fascismo, José Rodrigues dos Santos, política

Presença assídua na arena pública da traulitada intelectual, José Rodrigues dos Santos, insatisfeito com a labareda, volta a atiçar a fogueira da discussão sobre a hipotética origem marxista do fascismo neste artigo do Público, tese que alimenta o seu último livro.

Não tenho conhecimento científico para apoiar ou refutar as afirmação do jornalista da RTP – aliás, não tenho sequer habilitações para discutir a quantidade óptima de manteiga para barrar numa torrada, por isso escrevo num blogue -,  e até corro o risco de cumprir o papel de advogado do diabo, mas perturba-me o espírito de alcateia que parece mover os seus críticos; mas a minha intuição insinua algumas simplificações nos argumentos de JRS.

Esta discussão desdobra-se em centenas de calhamaços que povoam a bibliografia de várias disciplinas: filosofia, história, sociologia, etc. Por isso, é um pouco perigoso pisar o terreno minado das capelas académicas e assanhar os seus acólitos;  JRS põe-se a jeito quando lhes pisa os calos, é um provocador muito eficiente.

As aplicações práticas, quer do do comunismo, quer do fascismo, implicam sempre uma profunda revolução na sociedade, um darwinismo social segundo os seus critérios de evolução, e fazem tábua-rasa da pluralidade de opinião. Através da radicalização das frentes de batalha, alimentada pela demagogia, originam sangrentas guerras civis e longos totalitarismos. Francamente, isto parece-me óbvio, e desconfio sempre da lucidez e tolerância de quem adere a estas ideologias. No entanto, o comunismo tem um marketing muito mais eficiente pois o fascismo parte sempre de um estágio de violência, onde o comunismo acaba por chegar, mas sempre tem o odioso no discurso.  Isto talvez explique a candura de quem ainda o defende como necessário.

São dois regimes que, do ponto de vista da sua cartilha ideológica têm raízes diferentes, mas ambos se radicam no mesmo sentimento, profundamente humano e destrutivo:  o exercício do poder absoluto.

O JRS envereda por um caminho muito pisado e deveria evitar afirmações tais como: “Se acham que o fascismo não tem origens marxistas, façam o favor de desmentir as provas que apresento nos dois romances. E, já agora, aproveitem também para desmentir que o fascismo alemão se designava nacional-socialismo. Como acham que a palavra socialismo foi ali parar? Por acaso? “. É um argumento um tanto ou quanto infantil, mas que pouco se distingue em força argumentativa das teorias da conspiração típicas da esquerda; com ironia involuntária, até aqui os extremos se tocam.

Cartoons daqui.

 

 

A revolução nas cozinhas

22 Tuesday Dec 2015

Posted by Pedro Araújo in Literatura

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comunismo, Estaline, Lenine, Literatura, O Fim do Homem Soviético, perestroika, Prémio Nobel de Literatura, rússia, Svetlana Aleksievitch

“A cozinha russa…A modesta cozinhita khruschoviana de nove por doze (com sorte!) metros quadrados, atrás da fina parede da casa de banho. Planeamento soviético.  (…) No século XIX toda a cultura russa vivia nas casas apalaçadas, mas no século XX vivia nas cozinhas (…) onde se podia dizer mal do Governo e principalmente não ter medo (…) Ali nasciam ideias, projectos fantásticos. Contavam-se anedotas (…) Comunista era aquele que lia Marx, o anti-comunista era aquela que o compreendia.” O Fim do Homem Soviético, pág. 22

A matéria com que Dostoiévsky compôs a sua obra, antes da Revolução de Outubro, é atirada em bruto para as páginas de  “O Fim do Homem Soviético” deixando o leitor à mercê dos sonhos desfeitos e ressentimento dos relatores a quem a escritora Prémio Nobel da Literatura 2015 Svetlana Aleksievitch deu voz. Os sentimentos são modulados entre o arrebatamento e o choque com a realidade. Poucos livros me tocaram assim, aperta-se um nó no estômago com a crueza de testemunhos de mães e avós. Uma emocionante experiência de imersão literária.

Por outro lado, como leitor inocente, senti-me comunista contagiado que fiquei com a paixão pela ideia, por uma ideia, porque eram livros por todo o lado, pela ingenuidade de querer mudar o mundo e a ingenuidade sempre me enternece, pela compaixão com a desilusão e sofrimento atroz.  É um livro,  cujo título original, traduzido à letra, é “Um Tempo em Segunda Mão”, eminentemente russo na luta pela ideia que esta literatura não abandona, algo de grandioso que não se cumpre, o amor e a morte.

Que liberdade? A liberdade para a nossa gente é como óculos para o macaco. Ninguém sabe o que fazer com ela. (…)

“É uma vergonha alegrar-me com um moinho de café alemão…Mas eu estou feliz!”. Ela que esteve uma noite…só uma noite na bicha para comprar um  livro de Akhamátova, agora ficou doida por causa de um moinho de café. Por uma futilidade assim…E desfez-se do cartão do Partido como de uma coisa inútil. (…)

O tempo induziu-me em erro. Eu acreditava na Grande Revolução de Outubro. Depois de ler Soljenítsin, compreendi que os “belos ideais de comunismo” estão todos ensanguentados. Isso é um engano (…)

Foi o medo que me obrigou a entrar para o Partido…Os bolcheviques de Lenine fuzilaram o meu avô. E os comunistas de Estaline exterminaram os meus pais nos campos de detenção da Mordóvia.”

Os relatos seguem uma ordem, desde o encanto da ditadura aos desumanos escombros de décadas insanas, à indiferença dos jovens russos pelo passado que desprezam, alguns vestidos com  t-shirts do Che Guevara, admirando Lenine; outros que apenas querem ser o Abrámovitch, a posse e o glamour, o encanto pelo vazio. “(…) venderam um grande país por calças de ganga, Marlboro  e pastilhas elásticas”.

“Não tínhamos nada, mas éramos felizes. ” Inúmeras vezes ouvi eu esta afirmação, quer de saudosos salazaristas quer de democratas nascidos antes do 25 de Abril desapontados com o desencanto contemporâneo. É desconcertante. Não a tomo com ânimo ligeiro, não a julgo à luz de um suposto progressismo fruto do correr da História contra os conservadores, a “ideia” é muito mas forte do que podemos julgar vivendo num regime democrático e, propositadamente, amorfo. É capaz de nos seduzir mais do que a beleza de uma pessoa pois basta abraçá-la que nos receberá. Acredito muito nisto, não estamos a salvo.

“Sebastopol é uma cidade russa! Sebastopol será nossa!” Orgulham-se de que um russo seja capaz de beber um litro de vodca sem ficar a cair de bêbedo. Sobre Estaline lembram-se apenas que no tempo dele foram vencedores…

ps: Desconhecia a autora antes de ser anunciado o Prémio Nobel da Literatura deste ano, e parece que é vergonha admitir tal ignorância, mas que prazer é descobrir grandes livros, é a definitiva viagem onírica.

Este livro não consta dos tops anuais compostos em várias revistas tais como a revista E do Expresso ou o Ípsilon do Público. Não me interessam estes rankings que não se emancipam da opinião pessoal, e não duvido da qualidade daquelas obras que lá constam, mas este livro é magistral e o meio literário português tem de se libertar dos fantasmas que o assombram.

Se o “O Fim do Homem Soviético” não desperta paixões, então estaremos castrados.

Elogio à coragem de dizer

08 Sunday Nov 2015

Posted by Pedro Araújo in Digressões, Lusitanidades

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Artigo, Clara Ferreira Alves, comunismo, democracia, Expresso, política

A Clara Ferreira Alves é uma excelente cronista e uma pensadora independente. Na edição do Expresso deste fim-de-semana escreveu um extenso artigo sobre a sua experiência pessoal com a prática do comunismo em Portugal, e de imediato foi apedrejada pelos fariseus das redes sociais. As reacções à sua crónica são assustadoras do ponto de vista da prática democrática na sociedade portuguesa, não tardará a ser apelidada de fascista.

O seu testemunho é arrepiante, e se querem contra-argumentar será a desmentir relatos como o seguinte por onde podem começar:

“(…) Na Faculdade de Direito de Lisboa, os estudantes comunistas tinham o estranho hábito de decretar greves gerais sem consultarem todos os alunos nessa votação. Um aluno chegava à faculdade e diziam-lhe: hoje não entras, há greve. Há greve? Quem votou? Nós. Nós quem? Numa reunião secreta. Se foi secreta, como é que votámos? Nós votámos. Por causa desta discussão insana que despertava em mim instintos libertários e anarquistas, cheguei a furar uma ou duas greves com mais uns dementes como eu que não gostavam de ser paus-mandados. De um lado tínhamos os gorilas e do outro lado tínhamos as greves obrigatórias dos comunistas, que se arrogavam o monopólio da contestação.”

“Sobrando em Direito professores comunistas que não abdicavam da colectivização dos bens e dos meios de produção, fomos obrigados a estudar marxismo coagidos pela frase: quem vier para as minhas provas escritas e orais defender a propriedade privada pode contar com um chumbo.”

Eu, se fosse confrontado com tais terroristas, num tempo de um governo ditatorial iria sentir a mesma orfandade política que agora sinto. Lutar contra uma ditadura através de práticas ditatoriais revela o carácter da ideologia e nunca se pode esquecer a génese das coisas, não se trata de lançar anátemas, ou outro qualquer lugar-comum da comunicação política recente.

Esta hegemonia ideológica, ou chantagem ideológica para ser mais preciso, tem contornos escabrosos quando toma conta do meio literário. É algo de evidente ainda hoje, esses resquícios ainda se revelam no discurso anacrónico da esquerda quando reclama para si a bandeira da cultura.

“No meio literário português dominava largamente, não apenas através das instituições que controlava (da APE à SPA) como através dos compagnons de route sem filiação na extrema-esquerda radical e sem movimentos adequados à sua representação  (…)

Os grandes intelectuais portugueses sentiram-se sempre exilados dentro do seu país, como Fernando Pessoa e Alexandre O’Neill, ou exilados reais, como Jorge de Sena. (…)

A única escritora portuguesa que verdadeiramente escapou a esta hegemonia foi Agustina Bessa-Luís, e por isso ela permanece o ícone intelectual da direita (da nova direita) e por ela é exaltada e venerada. Agustina era o triunfo do individualismo desde que decidira escrever “A Sibila”. Agustina detestava os comunistas, não por serem comunistas mas por não serem livres.”

Por não serem livres, e não são.

A ilusão de massas

10 Friday Oct 2014

Posted by Pedro Araújo in Images & Words

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Communism: The Promise and the Reality, comunismo, Estaline, história, Lenine, muro de berlim, política, Portão de Brandemburgo, rússia, RFA

“Pelo menos uma vez na vida, queria ver como era o outro lado!” – lamentava uma jovem alemã que se sentia enganada, pois nesse dia foi anunciado que os alemães da RFA poderiam, pela primeira vez em décadas, passar para o lado ocidental da Alemanha, passar o Portão de Brandemburgo. Aconteceu a 9 de Novembro de 1989.

A “cortina de ferro” é um a metáfora que ilustra não apenas a barreira física em forma de tanques, paredes, guerrilhas, muros de betão, arame farpado e guardas. O comunismo é uma barreira mental que utiliza o poder de influência das massas, a formatação mais poderosa, sem lugar para desvios ideológicos.

Rússia, China, Alemanha, República Checa, Afeganistão, Vietname, Roménia, etc. A ideologia espalhou-se pelo mundo e, em meados de século passado, um terço da população vivia sob o jugo comunista.

Há vários documentários sobre os acontecimentos do século das ideologias, recentemente encontrei o “Communism: The Promise and the Reality” , que não disfarça a perspectiva ocidental sobre o tema, nem será o mais interessante ponto de vista do conteúdo e da narrativa – é nas histórias reais que as narrativas são mais importantes -, mas contém filmagens que não permitem a indiferença. Está dividido em seis partes, mas nem assim é fácil condensar todas estas diferentes “interpretações” do comunismo, e fizeram tábua rasa das particularidades dos povos que o “acolheram”.

Apesar de tudo, tem testemunhos de pessoas que viveram os regimes in loquo. Pessoas que foram  identificadas nas fotografias e filmagens, aquelas que contam a histórias que não cabem nos livros.

 

O solo fértil em Solo Virgem

24 Sunday Nov 2013

Posted by Pedro Araújo in Literatura

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Aristocracia, comunismo, Ivan Turguéniev, Literatura, Literatura Russa, livro, Nejdánov, Revolução, Solo Virgem

“O mesmo  olhar servil, impudente ou caído…

O nosso povo agora é livre, e o braço livre

Pende como antes o chicote à cinta.” (pág. 197)

O tema do confronto ideológico na Rússia da segunda metade do século XIX volta a ser tratado por Ivan Turguéniev. Se em Pais e Filhos, concentrou-se na génese ideológica da revolução, em Solo Virgem, esta começa a tomar forma através da obstinação cega dos activistas que se reuniam secretamente repetindo uma cartilha até à exaustão, até serem vergados pelo peso das palavras, seguindo instruções de um aparelho que desconheciam num paradoxo de troca de autoritarismo. Turguéniev ’embrulhou’  esta rigidez com uma mestria que não se compromete num julgamento, cedendo-o ao leitor mantendo a distância artística.

Solo Virgem é uma obra que se eleva acima dos confrontos doutrinários insinuados no parágrafo anterior, é uma obra sobre a inadequação da personalidade das personagens perante as suas próprias convicções, Nejdánov é a charneira deste contraste. É membro de um pequeno grupo de revolucionários que actuavam em Petersburgo, mas deles se distingue, fora suplantado pela sua razoabilidade e veia aristocrática, era um esteta, também nesta obra há o conflito  entre o descomprometimento da arte e a clandestinidade da luta, revelando a incompatibilidade entre as duas. A caracterização de Nejdánov parte de uma ingenuidade um pouco artificial relativamente ás paixões, claramente ele se sentia atraído por uma mulher mais velha, Valentina, e não sentia atracção pelas activistas que o rodeavam, representando este repulsa, o seu reconhecimento pela sua inadequação perante o carácter rectanglar de Machúrina.

A arrogância intelectual dos discursos políticos “sem levar em conta as circunstâncias especiais e sem mesmos tentar saber o que as massas queriam”, era acompanhada por um desprezo pelo povo que surgia como o solo virgem onde seriam semeadas as sementes revolucionárias. Esta atitude era sublinhada no outro lada da barricada, o establisment personalizado pelo desprezível Kalloméitsev que nunca perdia uma oportunidade para declamar a sua doutrina conservadora.

Este solo virgem, o povo do campo e das fábricas, estava assim encurralado entre estas duas forças antagónicas, era o campo  de batalha, o instrumento ao alcance das duas facções.

Há uma intimidade do autor com a arte e com a ciência, são constantes as referências a outros escritores, músicos, filósofos e cientistas. Particularmente, russos, alemães e ingleses. Tolstói também o fazia, mas com o propósito de servir como sustentação da a sua argumentação filosófica, em Turgueniév há uma clara reverência pelo mundo do conhecimento. É uma sensibilidade muito nobre,  é generoso nas suas referências, não denota nenhuma arrogância intelectual, para a qual facilmente poderia resvalar.

“(…) um tipo tão admiravelmente descrito por Lérmontov nos seus conhecidos versos:

“Todo escondido atrás da gravata, fraque até aos pés…

Bigode, voz trémula – e olhar pesado.”

Chegou outro vizinho de ar abatido, desdentado, mas impecavelmente vestido; chegou a médico distrital , um péssimo médico, mas que gostava de se exibir com palavras difíceis: garantia, por exemplo, que preferia Kúlkolnik a Púshkin porque Kúlkolnik tinha muito ‘protoplasma’ ” (pág. 50)

Mikhail Lérmontov fora um contemporâneo de Turguéniev. Em Pais e Filhos também este artifício. Não tenho a certeza de qual será a intenção do autor, talvez a de resgatar o leitor, com delicadeza,  do mundo da ilusão, afirmando que este está perante arte e deverá apreciá-la como tal. Não seria também surpreendente que, após uma clivagem tão grande entre a caracterização das várias personagens, antecipando um claro conflito entre as mesmas, esta invocação da arte resfrie um pouco o ânimo.

A constante actualização dos dados biográficos das personagens tem detalhes absolutamente brilhantes (pag 109)  o casal de velhotes Fómuchka e Fímuchka, tais como a rapariga anã, Pufka, que os entretia com notícias sobre Napoleão e a guerra de 1812 . Toda aquela imagética arcaica que  compõe cada detalhe da vida do casal estabelece um contraste desconcertante com a vontade de ruptura dos três jovens revolucionários. É um capítulo onde a referência a Gógol não é inocente, um sarcasmo de crivo fino, criando situações de embaraço que revelam a impaciência e obtusidade de Markélov.

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Turguéniev, à imagem de Pais e Filhos, cria interessantes oposições de personalidades entre mulheres que moram na mesma casa, jogando com essa intimidade expõe a sua inteligência e conquista-lhes pela literatura, a independência que a realidade lhes recusa. Marianna é sobrinha de Sipiágin que dela tomara conta, mas a orgulhosa rapariga não suportava esta dependência apesar do conforto do ambiente aristocrático de cigarros e jogos de  cartas em salões decorados para o efeito, foi encontrar na luta de classes, através de Nejdánov, uma motivação que lhe dava sentido à vida. Valentina Mikháilovna, esposa de Sipiágin, é uma bela senhora, confortável com o seu estatuto, que se foi revelando intriguista na segunda parte da obra.

Solo Virgem divide-se em duas partes, e as transformações que referi ocorrem em ambas com muita clareza. Se na primeira parte, o charme de Valentina e Sipiágin são um paradigma da diplomacia aristocrática, deixam cair a máscara na segunda parte do livro e tudo fazem para manter incólume o seu estatuto perante a sociedade que frequentavam.

(…) foi dominada por aquela sensação verdadeiramente ministerial  de superior compaixão e condescendência fastidiosa tão característica dos burocratas de Petersburgo. “Meu Deus!  Que infeliz!”, pensou. “E ainda por cima parece que é coxo!” (pág. 219)

O fragmento inicial  pertence a um poema escrito pela personagem principal, Nejdánov. A sua evolução ao longo do livro suporta aquilo que comummente se designa de “mensagem”, aquilo que eu entendo que Turguéniev pretende transmitir. A narrativa vai-se precipitando dolorosamente para a desilusão na segunda parte, a revolução iminente transforma-se num doloroso purgatório que durará umas dezenas de anos até o céu revolucionário se abrir e acolher os crentes com bonomia. Turguéniev não podia saber, mas previu que a resistência ideológica  da população às investidas dos jovens intelectuais seria efémera, e cederiam pela necessidade e não pela crença.

É uma obra maravilhosa, marcante.

Também hoje se instrumentaliza o povo como força impulsionadora de uma revolução ideológica confortável paras as elites que a defendem, mas para o povo imune aos privilégios,  as ideias não dão de comer.

Isto afinal está a render…

11 Monday Nov 2013

Posted by Pedro Araújo in Uncategorized

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Álvaro Cunhal, Burguesia, capitalismo, comunismo, portugal, Relatório de Ultra-Riqueza no Mundo 2013, Riqueza, UBS

A fogueira da luta de classes tem sido alimentada vorazmente desde o século 19. Desde então, vários acontecimentos tais como a revolução bolchevique ou o crash da Bolsa, têm servido como óbvias armas de arremesso para desmontar os argumentos da trincheira adversária.

À nossa dimensão, em Portugal, corporizamos também esta polarização ideológica em episódios, felizmente longe das grandes crises em que os extremismos, invariavelmente, culminam. Coincidentemente, e é mesmo coincidência, hoje celebra-se os 100 anos do nascimento de Álvaro Cunhal, o histórico líder comunista, ao mesmo tempo vem a lume um relatório onde se conclui que os mais ricos enriqueceram desde 2012.

À semelhança do relatório sobre o consumo de cultura dos europeus, é muito tentador tirar conclusões pouco académicas com base neste outro relatório do banco suíço UBS onde se conclui que, em Portugal, há mais 85 milionários – indivíduos com fortunas superiores a 30 milhões de dólares (perto de 22,4 milhões de euros) – do que em 2012. Relatório de Ultra-Riqueza no Mundo 2013 é o dito cujo.

Uma vez que a quantidade rendimentos disponíveis da classe média vai no sentido inverso da fortuna da burguesia, indago que factos explicam esta prosperidade. Não tenho qualquer asco ideológico relativamente aos ricos, mas se os impostos incidem com mais violência nessa classe social – 49% no IRS, por exemplo – com explicar tal fenómeno? Não me vou lançar na adivinhação, mas que não pode haver acha mais incandescente atirada para o celeiro da luta de classes, disso tenho a certeza.

Exumar lutas que deviam fazer parte da História, é sinal de retrocesso, é dar razão a Marx quando dizia que a História se repete, uma segunda vez, como farsa. Pior do que isso, é fazer com que tenho um sentido concreto para além da parangona ideológica.

Daqui.

Prémio Nobel do “punho cerrado e olhos fechados”

12 Tuesday Oct 2010

Posted by Pedro Araújo in Digressões

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China, comunismo, Estaline, Fidel Castro, Lenine, Liberdade, Liu Xiaobo, PCP, política, Prémio Nobel da Paz

Sobre a atribuição do prémio Nobel da Paz deste ano, o PCP divulga o seguinte comunicado na sua página:

“A decisão da atribuição do Prémio Nobel da Paz a Liu Xiaobo – inseparável das pressões económicas e políticas dos EUA à República Popular da China – é, na linha da atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2009 ao Presidente dos EUA, Barack Obama, mais um golpe na credibilidade de um galardão que deveria contribuir para a afirmação dos valores da paz, da solidariedade e da amizade entre os povos.”

Não tenho dúvidas da conotação política, até porque quem atribuiu o prémio tinha o objectivo de alertar, mais uma vez, para a “amizade entre os povos” que existe na China. Um país, onde pessoas são presas por defenderem a liberdade de expressão, “Ah bandidos subversivos!”, uma bandeira tantas vezes hasteada pelo PC.

O vosso sistema não funciona. O comunismo falhou sempre. Temos de ser pragmáticos. Defender os ideais com veemência é uma virtude, e tenho simpatia com a esquerda por isso,  acreditar em regimes que, invariavelmente, restringem de forma grosseira as liberdades individuais,  tem uma conotação mais religiosa do que política.

Assobiar para o lado quando se fala em Estaline, Lenine, Mao Tsé-Tung e outros camaradas, não vos dá grande credibilidade.Dou o braço a torcer, quando acusam a UE de hipocrisia, ao dar estas “facadas” politicas à China e manter relações comerciais muita proveitosas com o mesmo país. Certamente que um embargo económico teria consequências nefastas para o povo chinês, seria uma irresponsabilidade. É o problema de se defenderam causas, facilmente nos tornamos vítimas da nossa crença, e vocês sabem bem o que isso é.

Já agora, publiquem um comunicado sobre as declarações do vosso ilustre camarada Fidel, sobre o justíssimo modelo económico comunista “Já não funciona nem para nós”, disse ele. Está completamente gagá, o velhadas.

Slavoj Žižek, o Marxismo na actualidade

08 Friday Jan 2010

Posted by Pedro Araújo in Thoughts

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Balcãs, comunismo, Marxismo, política, Slavoj Žižek

Em relação ao post anterior deu-me para ver isto, sabe-se lá porquê…mas atenção eu não sou comunista e não considero que o comunismo seja o oposto da extrema-direita. O oposto desse museu intelectual é o bom senso. E não me chamem de arrogante, por favor. Aliás, no meio desse conjunto patético de “ideias” é uma virtude.

O inglês é um bocado difícil de entender, o sotaque dele é demasiado carregado. Slavoj Žižek é um pensador importante, um marxista à moda antiga, segundo ele próprio afirma. Tenho um livro dele, e tenho sempre de ler cada frase duas ou três vezes para entender o que ele diz, mas oralmente não é tão rebuscado. É um tipo que fala com entusiasmo e de tshirt suada. Eu fico sempre curioso, para saber o que alguém inteligente tem a dizer sobre um sistema que falhou sistematicamente ao longo da História. Sobre este e outros temas, tem sempre pontos de vista extremamente inteligentes. “O Berlusconi está para a democracia como Joker para o Batman”

A propósito do assunto que tem estado a “bater” neste blog (do qual não me atrevo a escrever, sob pena de morrer à fome, agarrado ao teclado), fica aqui uma prespectiva interessante sobre o tema 😀

Comunismo vs Fascismo, Round 182364956950

28 Tuesday Jul 2009

Posted by Pedro Araújo in Thoughts

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Comunidade, comunismo, democracia, Ditadura, Fascismo, Liberdade, Partilha, Vilarinho da Furna

Recentemente tem havido uma balbúrdia lançada por artista destas coisas, eu admito que tenho uma certa simpatia pela figura, pelo cariz humorístico absolutamente hilariante do seu discurso, e por uma inteligência social disfarçada naquele estilo circense, não é um homem estúpido. A questão lançada pelo sr. Alberto João Jardim é pertinente, o comunismo é moralmente equivalente ao fascismo. Eu tenho que começar por dizer que estas questões são muito complexas, envolvem uma linguagem por vezes difícil de entender e eu não tenho conhecimento suficiente para falar disto de uma forma, digamos académica, tal como devem ser tratados estes assuntos, mas como estamos na blogosfera, a tasca da Internet, este assunto é como tremoços, vão-se comendo as palavras e no fim não resta nada, cada um comeu o que quis ou pôde. Eu adoro estes petiscos ideológicos, e como-os como um habitante da Boalhosa (remota terra de Vila Verde) comeria caviar, sem intelectualizar, apenas saboreia.

Penso que a discussão deve começar por esclarecer (coisa que não vai acontecer, porque já se discute isto à anos e não se chegou a um consenso) se as ditaduras comunistas são uma perversão (é sempre esta a palavra utilizada e parece-me acertada) da ideologia marxista ou uma consequência lógica da sua própria concepção. É uma grande diferença, mas sinceramente, eu inclino-me mais para a segunda. Para clarificar o que penso dou o seguinte exemplo. Vilarinho da Furna, na Peneda-Gerês. Trata-se de uma aldeia que desapareceu devido à construção da barragem. As pessoas viviam em comunidade. Tinham leis próprias, havia terras que pertenciam a cada um, mas havia outros terrenos que eram partilhados pelas pessoas, com tarefas pré-definidas para cada um e democraticamente aceites. Havia uma assembleia onde se discutiam os problemas comuns a todos e se votava qual a melhor solução. Isto trata-se de um pequeno exemplo de uma perfeita democracia popular onde a partilha é uma base fundamental. Desconheço mais pormenores sobre a economia desta terra, já me falaram muito nisto, mas não me recorda e a informação é escassa. Seja lá como for, certamente estas pessoas não faziam isto porque tinham bandeiras vermelhas em casa, tratava-se apenas da lógica da sociedade humana. A entre-ajuda e a resolução dos problemas em conjunto. O que se passa é que todas as pessoas se conheciam, podiam olhar nos olhos uns dos outros e discutir, coisa que não se pode fazer num país com 50 milhões de pessoas. Penso que esta questão é fundamental. É impossível generalizar esta ideia a um país inteiro. A gestão da propriedade em pequena escala é relativamente simples, todos podem ter uma palavra, mas isso não acontece em larga escala, a opinião de cada um dilui-se numa utopia, num sonho de um homem que perante a tremenda injustiça que imperava no seu tempo, idealizou uma sociedade igualitária, onde todos tivessem oportunidade. Não funcionou. A aplicação do comunismo falhou redondamente, os seus porta-vozes como Estaline ou Lenine são recordados como ditadores que com o seu sistema condenaram à morte milhões de pessoas.

Qual é a diferença em relação ao fascismo? Há várias, uma que é essencial é o fascismo assenta no principio que o estado é digno de obediência e subserviência por parte do povo e não um “instrumento” para o bem estar comum. Nem sequer vou falar dos princípios racistas e ultra-conservadorismo que estão associados ao fascismo. A questão do papel do estado faz toda a diferença. O que causa estranheza é que os estados comunistas não agiam em prol do bem comum, muito pelo contrário, toda a riqueza estava nas mãos do estado e o povo (aqueles que sobreviviam) na miséria.

Pode-se estão assumir que qualquer governos comunista iria governar dessa forma? É inevitável? Muita gente estudou este fenómeno, sinceramente não sei responder. Mas as experiências que ocorreram até ao momento foram más demais, e aquelas que ainda decorrem (Cuba, Venezuela, etc) são são grande exemplo de democracia.

Quando se fala em proibir o comunismo, trata-se de abolir uma ideologia e não proibir regimes totalitários, senão apenas se estava a constatar o óbvio. Um coisa é certa, abolir ideologias é uma das principais armas de repressão dos regimes fascistas. Uma lei dessas iria causar muita discussão, a nível europeu existe muita gente que ainda acredita que é possível. E muito boa gente, não se tratam de pessoas estúpidas, apenas acreditam verdadeiramente numa sociedade perfeita, mas que não pode existir. Somos demasiado gananciosos para partilhar.

Isto é algo que me consome a cabeça desde há muito tempo. O capitalismo selvagem sem ética que existe agora na nossa sociedade actual, é algo ao qual me oponho profundamente, por outro lado um sistema que “acorrente” o inevitável diferenciamento entre as pessoas é contraproducente e injusto. Como é que se pode censurar alguém que é inteligente e tem visão, trabalha imenso e consegue montar uma empresa com sucesso e ganhar rios de dinheiro? Vão-se obrigar todas as pessoas a ser pobres e a viver de certa maneira? Partilhar com quem não quer fazer nada? (Este argumento é muito utilizado pela extrema-direita) Também não é justo.

Esta é uma visão extremamente simplista que eu tenho sobre o assunto, muito mais se pode dizer. Fundamentalmente, discorda da comparação que é feita entre os dois regimes, a maioria dos argumentos dados afasta-se da ideologia original e enfatiza as consequências da sua aplicação. Consequências essas, de tal magnitude que na minha opini4ao justificam um maior pragmatismo, não cínico mas sim construtivo, em relação à honestidade colectiva da Humanidade ao contrário do que os comunistas tem. Muita gente do lado dos comunistas ficou escandalizada com a proposta, defendem que foi à custa destas experiências socialistas que se criou o ensino público e acesso a tratamentos de saúde, coisas fundamentais. Mas mais uma vez, as consequências foram igualmente más, não à escolha possível entre as duas, mas cada macaco no seu galho. Estas questão está a ser vista de uma forma superficial, com argumentos da parte da direita que nunca visaram a ideologia, apenas a sua aplicação.

Muito sinceramente, com tantos problemas que existem neste momento, um crise que certamente não foi fomentada por ideologias comunistas, parece-me uma questão ao nível de que deviam haver mais rebuçados de morango nas embalagens de rebuçados com vários sabores.

Neste link, pode-se consultar o manifesto comunista redigido por Karl Marx e Friedrich Engels, é nesse documento que estão explanados os princípios fundamentais do comunismo. Neste outro encontram-se algumas reflexões sobre o fascismo e o comunismo.

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