Ainda o Acordo Ortográfico de 1990. Este processo, cujos contornos são cada vez mais imperceptíveis, à medida que os seus defensores, anos depois da implementação do dito cujo, vão emitindo opiniões em forma de rescaldo, desviando-se com grande estrondo das pretensões iniciais do acordo, naquele exercício de aproveitamento da amnésia colectiva que poda os detalhes da discussão pública, ainda não cessou de causar espantos, sempre variados.
Tenho a noção de que a oposição ao acordo me atira para o lado do conservadorismo, rótulo imediato para quem questiona a mudança (sempre julguei ser o espírito crítico um sinal de progresso, mas ora me espanto, ora me desencanto, já dizia a cantiga), mas este processo tem contornos de falcatrua e eu não gosto de ser tomado por lorpa. Parece até, que constitui uma afirmação progressista (no sentido utópico da palavra, ou seja, o máximo benefício para todos; porque se pode progredir da borda de um penhasco, para o abismo na sua base, tratando-se um progresso) abraçar este acordo e, através do açoite verbal, exilar os seus opositores num quarto bafiento para que se cubram com as teias-de-aranha do saudosismo. Não tardarão a dizer que a grafia pré-AO era a língua do Salazar – é uma dica com a qual, certamente, o deputado João Galamba se sensibilizaria; mas, para o bem e para o mal, ele não se tentará em enfiar esta atordoada na sua retórica plena de “entos” pendurados no fim dos adjectivos, pois nem a mesma tem a elegância que lhe convém, nem este pasquim digital é frequentado pela aristocracia intelectual lisboeta.
Hoje, em entrevista ao Expresso, a Presidente do Instituto Camões, Ana Paula Laborinho (faço referência à pessoa, sem qualquer intenção de julgamento de carácter, pretendo discutir ideias, apenas; apesar das águas turbulentas, e o batel abanar, remamos no mesmo sentido), afirmou o seguinte, numa conversa que se iniciou com as estatísticas costumeiras sobre os número de falantes de língua portuguesa (ah, o assomo patriótico com os milhões disto e daquilo…), e que se precipitou num tema que se anunciava como inevitável, tendo em conta o tema da entrevista e o cargo da entrevistada:
Repare, minha cara senhora, cumprindo o papel de indignado das redes, se eu exclamasse com espanto perante o êxtase da sua resposta, com um resmungado “A menina deve estar a gozar comigo?”; arriscaria numa interpretação, se partindo do português de Portugal, através do qual, se por um lado se poderia concluir concluir a exclamação conter um elogio inicial à aparência jovem de uma senhora que nascera dezassete anos antes do 25 de Abril, mas ao qual se seguiria um impropério que deitaria por água abaixo qualquer simpatia causada pelo duvidoso elogio – que nos dias que correm é tomado por uma discriminação sexual, tendo em conta a referência estética, e é de mau gosto, admito; ainda bem que estamos no campo da especulação, pois eu nunca me dirigiria assim à senhora, embora a urticária do tema me faça perder um pouco as estribeiras com a comichão que me provoca.
Imagine então, que por qualquer capricho do caos cósmico, a senhora nascera no Brasil. Já viu, que equívoco embaraçoso se poderia dar entre nós, se a senhora tomasse à letra a minha exclamação? Eu passaria por alarve – estatuto que me é reconhecido sem precisar de potenciar equívocos linguísticos – e a senhora por pouco perspicaz ao não alcançar as distinções semânticas entre o português de Portugal e o do Brasil. Daí o meu espanto, com a elevação que aplica nesse prodígio.
Então, o AO (que pode ser consultado aqui) trata da ortografia, da semântica ou de ambas? Em que ficamos? De que forma o AO viabiliza um ensino da língua uniforme tendo em conta as profundas, e enriquecedoras diferenças (tal com o a presidente do Instituto Camões o afirma, nesta mesma entrevista)? A resposta de entrevistada tem algo de especulativo, parece enunciar uma expectativa, não tem carácter de afirmação; ainda assim não deixa de ser surpreendente esperar efeitos beatíficos de uma norma tão limitada, quer pelo alcance intrínseco, quer pela sua subreptícia implementação.
O elogio à diversidade linguística, do qual partilho com o maior entusiasmo, não é compatível com a aspiração à uniformização. Afinal, que limitações, que não as de mercado ou de marketing, impedem os leitores das várias nacionalidades se lerem entre si? Há alguma necessidade de traduzir o português do Brasil e vice-versa, para além da compensação da cretinice, da ignorância? Francamente, não me parece, e, tendo em conta um futuro cosmopolita, cultivador da diversidade, o AO já é obsoleto. Abaixo.
Para finalizar, presumo que o AO ainda não estivesse implementado na altura em que foi escrito e publicado no site da FCT, a julgar pelas consoantes condenadas que vão ainda sobrevivendo no quarto artigo.
“Artigo 4.º
Os Estados signatários adoptarão as medidas que entenderem adequadas ao efectivo respeito da data da entrada em vigor estabelecida no artigo 3.º”